Vejam que forma interessante de começar, aos pouquinhos, a cumprir a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos que mandou ao Brasil que pare de ignorar os crimes cometidos por agentes públicos durante a ditadura (caso Gomes Lund vs. Brasil, 2010).
Trata-se de sentença do juiz Guilherme Madeira Dezem, da 2ª Vara de Registros Públicos da Capital, mandando retificar atestado de óbito de um preso político morto após sessão de tortura no DOI da Rua Tutóia. (Fonte: blog Interesse Público, de Frederico Vasconcelos)
Vistos.
Trata-se de ação promovida por MARIA ESTER CRISTELLI DRUMOND em
que pretende a retificação do assento de óbito de seu falecido marido
JOÃO BATISTA FRANCO DRUMOND para que conste que faleceu nas dependências
do DOI/CODI II Exército, em São Paulo e para que a causa morte seja
retificada para morte “decorrente de torturas físicas”. Junta documentos
com a petição inicial.
Trata-se do óbito de seu falecido marido lavrado em 18 de
dezembro de 1976, contante do livro 18, às fls. 138v, do Cartório do
Registro Civil do 20º Subdistrito – Jardim América.
Durante a instrução foi colhida prova oral160/169.
A autora apresentou já em audiência seus memoriais finais.
O Ministério Público manifesta-se pela procedência em parte do
pedido. Afirma que é possível a retificação do local do óbito, bem como
afirma estar comprovado o local em que ele ocorreu. Quanto à “causa
mortis” afirma não haver previsão legal para o quanto pretendido pelo
autor, bem como sustenta não haver prova segura para sua pretensão (fls.
173/175).
É, em breve síntese, o que cumpria relatar. FUNDAMENTO E DECIDO.
A questão do local do óbito encontra-se amplamente comprovada nos
autos. Com efeito, a prova oral é segura em demonstrar que a vítima
faleceu nas dependências do DOI/CODI II Exército, em São Paulo.
Neste ponto, o depoimento de Wladimir Pomar é fundamental para
que se compreenda o local da morte: afirmou a testemunha que se
encontrava com a vítima em reunião do Partido Comunista, ocasião em que
foram embora juntos do local.
Chamou a atenção da testemunha que a vítima possuía um saquinho
de biscoito e que este saco de biscoito foi onde a vítima colocou
exemplares do jornal “Classe Operária”.
Posteriormente, naquela mesma noite, foram presos (cada um em um
local) e a testemunha ouviu de um carcereiro que havia sido preso alguém
com um saquinho de biscoitos e dentro o jornal “Classe Operária” (fls.
161/162).
Ainda, a testemunha Haroldo disse, às fls. 163, que também se
encontrava na mesma reunião e no mesmo dia em que houve a prisão. Afirma
que no dia seguinte fora enviado para o Rio de Janeiro e que, no avião,
identificou que se encontravam no avião Pomar, Aldo e Elza Monerrat,
mas não estava a vítima Drumond.
Também a testemunha Aldo, às fls. 165, afirma que sua sessão de
tortura foi subitamente interrompida e que percebeu que havia algo
errado acontecendo no local. Após a tortura, foi levado para uma sala em
que ficou algemado e lá pode perceber que havia uma reunião acontecendo
e depois entendeu que se tratava da reunião para decidir sobre como
lidar com a morte de Drumond.
Nilmário Miranda e Paulo Abrão, por sua vez, atuaram nos
processos relativos à análise dos direitos dos anistiados políticos.
Seus depoimentos confirmam que, na qualidade de julgadores destes
processos administrativos, ficaram convencidos do falecimento de Drumond
nas dependências do DOI/CODI.
A questão do local do falecimento encontra-se amplamente
comprovada nos autos. Neste ponto o representante do Ministério Público,
inclusive, manifesta-se favoravelmente à pretensão da autora.
Resta a questão da causa mortis.
Aqui, dois são os óbices apresentados pelo representante do
Ministério Público: a) ausência de prova e b) ausência de previsão
legal. Vejamos cada um dos pontos.
Quanto à ausência de prova, não me parece acertada a manifestação ministerial, com a devida vênia.
Nilmário Miranda em seu depoimento esclarece que o julgamento
administrativo foi unânime no sentido da responsabilidade do estado pelo
homicídio ocorrido nas dependências do DOI/CODI em decorrência da
tortura.
É importante notar, inclusive, que não se trata de simples opção
política pela via “a” ou “b”, mas de manifestação do direito à memória e
à verdade, tanto que na comissão que julgou este caso havia membro das
Forças Armadas e que votou favoravelmente à pretensão da autora.
Também, da mesma forma, é importante notar que há sentença
proferida pela Justiça Federal em 1993 da lavra da Dra. Marianina
Galante (fls. 37/50) que reconhece ter havido tortura no presente caso.
Então, com a devida vênia, entendo que o primeiro óbice
apresentado pelo representante do Ministério Público encontra-se
superado.
Quanto ao segundo ponto, entendo que se trata do principal tema a
ser observado neste caso: analisar o que efetivamente pode integrar a
certidão de óbito como causa mortis.
Aqui, a posição do representante do Ministério Público mostra-se
dotada de estrita técnica e para a maioria dos casos envolvendo esta
questão, não tenho dúvidas que a solução seja de improcedência.
Vale dizer: certidão de óbito não é local para discussão atinente
a crime ou qualquer outro elemento passível de questionamento ou
interpretação jurídica. É dizer: no atual sistema jurídico, não podem as
partes pretender a retificação de certidão de óbito para que se conste
que a pessoa morreu em decorrência de latrocínio, ou homicídio, ou
qualquer outro elemento.
No entanto, há detalhe neste caso que o torna diferente de todos
os outros existentes no país. Este caso liga-se ao chamado Direito à
Memória e à Verdade e, acima de tudo, liga-se à relação do sistema
jurídico interno com a Proteção Internacional dos Direitos Humanos.
No Caso Gomes Lund e outros (Guerrilha do Araguaia) vs. Brasil,
houve a condenação do Estado brasileiro em 24.11.2010. Nesta sentença
ficou reconhecido que:
“El Estado ha incumplido la obligación de adecuar su derecho
interno a la Convención Americana sobre Derechos Humanos, contenida en
su artículo 2, en relación con los artículos 8.1, 25 y 1.1 de la misma,
como consecuencia de la interpretación y aplicación que le ha dado a la
Ley de Amnistía respecto de graves violaciones de derechos humanos.
Asimismo, el Estado es responsable por la violación de los derechos a
las garantías judiciales y a la protección judicial previstos en los
artículos 8.1 y 25.1 de la Convención Americana sobre Derechos Humanos,
en relación con los artículos 1.1 y 2 de dicho instrumento, por la falta
de investigación de los hechos del presente caso, así como del
juzgamiento y sanción de los responsables, en perjuicio de los
familiares de los desaparecidos y de la persona ejecutada indicados en
los párrafos 180 y 181 de la presente Sentencia, en los términos de los
párrafos 137 a 182 de la misma.” (p. 116).
Vale dizer, há sentença da Corte Interamericana de Direitos
Humanos que determina que o Brasil efetive medidas para o reconhecimento
do Direito à Memória e à Verdade.
Daí a particularidade deste caso que o afasta de todos os demais
com pretensões similares. Não se trata de discutir se tortura pode ser
incluída como “causa mortis” ou não. Trata-se de reconhecer que, na nova
ordem jurídica, há tribunal cujas decisões o Brasil se obrigou a
cumprir e esta é mais uma destas decisões.
Assim é a lição de André de Carvalho Ramos que ensina que “Já no
sistema judicial interamericano há o dever do Estado de cumprir
integralmente a sentença da Corte, conforme dispõe expressamente o
artigo 68.1 da seguinte maneira: ‘Os Estados-partes na Convenção
comprometem-se a cumprir a decisão da Corte em todo caso em que forem
partes’” (RAMOS, André de Carvalho. Processo Internacional de Direitos
Humanos, 2ª edição, São Paulo, Editora Saraviva, p. 235).
Também é importante notar que neste mesmo julgado da Corte, o
juiz Roberto de Figueiredo Caldas em seu voto faz importante
advertência: “31.É preciso ultrapassar o positivismo exacerbado, pois só
assim se entrará em um novo período de respeito aos direitos da pessoa,
contribuindo para acabar com o círculo de impunidade no Brasil. É
preciso mostrar que a Justiça age de forma igualitária na punição de
quem quer que pratique graves crimes contra a humanidade, de modo que a
imperatividade do Direito e da Justiça sirvam sempre para mostrar que
práticas tão cruéis e desumanas jamais podem se repetir, jamais serão
esquecidas e a qualquer tempo serão punidas.”
Ante o exposto, julgo PROCEDENTE o pedido para determinar a
retificação da certidão de óbito de fls. 21 para que onde se lê
“falecido no dia 16 de dezembro de 1976 na Av. 9 de Julho c/R;Paim”
conste “falecido no dia 16 de dezembro de 1976 nas dependências do
DOI/CODI II Exército, em São Paulo” e onde se lê causa da morte
“Traumatismo craniano encefálico” leia-se “decorrente de torturas
físicas”.
Após certificado o trânsito em julgado, concedo o prazo de até 30
(trinta) dias para a extração de cópias necessárias. Custas à parte
autora.
ESTA SENTENÇA SERVIRÁ COMO MANDADO, desde que por cópia extraída
pelo setor de reprografia do Tribunal de Justiça, assinada digitalmente
por este(a) Magistrado(a) e acompanhada das cópias necessárias ao seu
cumprimento, inclusive da certidão de trânsito em julgado, todas
numeradas e rubricadas, com certidão abaixo preenchida pela Sra.
Coordenadora ao Sr. Oficial da Unidade do Serviço de Registro Civil das
Pessoas Naturais competente para que proceda às retificações deferidas.
Outrossim, se aplicável, poderá nesta ser exarado o respeitável
“CUMPRA-SE” do Excelentíssimo Senhor Doutor Juiz Corregedor Permanente
competente, ordenando seu cumprimento pelo Senhor Oficial da respectiva
Unidade do Serviço de Registro Civil das Pessoas Naturais.
Ciência ao
Ministério Público.
Oportunamente, arquivem-se os autos.
P.R.I.
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