Ayres Britto, poeta desde sempre e presidente do STF desde ontem, assumiu com a bandeira do julgamento do mensalão no estandarte. Jornais têm noticiado, durante toda semana, atos de pressão que partes interessadas no caso, que são muitas e com interesses diversos, têm feito sobre os ministros do Supremo para apressar o julgamento ou adiá-lo, ou ainda para interferir nos votos neste ou naquele sentido.
Pressões políticas sobre o Poder Judiciário, em geral, ou o Supremo Tribunal Federal, em particular, são antigas e fáceis de se entender. Nas democracias que depositam em órgãos de cúpula do Poder Judiciário a tarefa de guardião e uniformizador do sentido de todo o ordenamento jurídico,uma disputa por poder sempre compreenderá também uma disputa por influência sobre o tribunal e seus ministros.
Isso tudo lembra-me uma história, que serve de pretexto para compartilhar com os leitores um memorável documento, como sempre procuro fazer aqui no blog.
Em Dezembro de 1964, o veículo de informação oficial do Sistema Nacional de Informações (SNI), chamado Impressão Geral, sugeria o aumento de número de ministros no STF. Trata-se de sua edição de número 13. Era responsável pelo Impressão Geral o diretor do SNI - àquela altura, Golbery do Couto e Silva.
Boatos do desejo de interferência do governo sobre o Tribunal eram muitos e frequentes. Vinham desde que, pouco tempo após o golpe, o Tribunal - como boa parte do resto do Judiciário - passou a interferir sobre prisões políticas, mandando soltar dissidentes como Miguel Arraes. Já em outubro de 1964 o STF havia afirmado a incompetência da justiça militar para casos de crimes políticos, revoltando militares e levando a políticos como Magalhães Pinto, governador de Minas Gerais sempre muito aliado ao regime, a sugerir a criação de uma justiça de exceção apenas para o julgamento de "crimes de subversão e da guerra revolucionária".
Nesse contexto, o Supremo organizou-se para barrar o que seus ministros, com todo acerto, viam como indevida interferência política sobre o tribunal. A Corte institucionalmente manifestou-se contra a proposta de aumento, apresentando estudo que refutava o argumento, que era a "justificativa técnica" do governo, de que o aumento de juízes aliviaria a carga de trabalho dos ministros e levaria a maior agilidade nos julgamentos.
Victor Nunes Leal |
Intitulado "Supremo Tribunal Federal: a questão do número de juízes", o texto transcreve a fala do ministro, em agosto de 1965, rebatendo, com argumentos práticos, jurídicos e políticos, as justificativas dos militares para o aumento do número de ministros. Mais interessante de tudo é notar como ele o faz a partir de uma visão constistente, e construída a partir da história do STF no Brasil, do que deve ser o papel de uma corte suprema. Em sua opinião, um órgão como o STF não deveria sequer dividir-se em turmas. (Deve estar rolando no túmulo de saber que a vasta maioria das decisões da Corte é hoje monocrática.)
Um mês depois dessa palestra, Victor Nunes Leal participou do julgamento do líder comunista Francisco Julião, preso político, defendido pelo anti-comunista Sobral Pinto, a quem o STF mandou soltar por excesso de prazo. A revolta dos militares foi tão grande quanto por ocasião do julgamento de Arraes. Costa e Silva, àquela altura Ministro da Guerra, num churrasco de militares poucas semanas depois, instou o governo a reagir contra o Tribunal, porque o Exército não precisava levar lição de juíz nenhum.
Logo em seguida veio o AI-2, que, entre outras coisa, aumentou para 16 o número de ministros do STF. Só em Fevereiro de 1969, após o AI-5 e as aposentadorias compulsórias por ele permitidas, o Tribunal voltou a ter os mesmos 11 ministros de sempre.
Do julgamento de Francisco Julião participaram cinco ministros. O relator do caso, Luiz Galotti, votou contra a concessão do HC e sua vida seguiu como antes. Votaram pela concessão da ordem, e portanto contra os interesses do governo militar naquela situação, os ministros Gonçalves de Oliveira, Antonio Villas Boas, Evandro Lins e Silva, Hermes Lima e o mencionado Victor Nunes Leal.
Gonçalves de Oliveria aposentou-se por idade, em 1966.
Antonio Villas Boas aposentou-se no início de 1969, em protesto à interferência do governo no Tribunal.
Tal interferência consistiu justamente na aposentadoria compulsória dos outros três, imediatamente em seguida ao AI-5.
Às vezes, defender a instituição custa: quem o faz corre o risco de tornar-se impopular, de ter posta a cabeça a prêmio. Não estou certo de que Ayres Britto esteja disposto a arriscar nem a popularidade, nem a cabeça como presidente do STF. E bem neste momento em que a independência do Tribunal será fundamental. Adoro poesia e acho o novo presidente um sujeito simpático, inclusive ideologicamente, mas ficaria mais seguro com o Victor Nunes Leal lá na cadeira dele...
(Goste você do Ayres Britto ou não, não deixe de ler o texto de Victor Nunes Leal.)
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