Aproveitando o embalo do texto de Dworkin postado no início desta semana, convidei Daniel Wang, especialista no tema do acesso à saúde, para comentá-lo. Muito gentilmente, ele aceitou e enviou o ótimo texto abaixo, que compartilho com os leitores.
A universalização do cuidado à saúde e o
excepcionalismo americano
Daniel Wang*
Aeroporto de Chicago, junho de 2010. O
oficial da imigração olha para minha cara, confere o passaporte, e começa a
bateria de perguntas. Quanto tempo vai ficar em solo americano? Duas semanas.
Parentes? Apenas um tio do meu pai, que pretendo visitar. Qual o propósito de
sua viagem? Vim para a conferência da American Law and Society Association,
inclusive tenho um convite da organização, caso o senhor queira ver. (pausa
para leitura) Então você vem falar sobre direito à saúde?
Ao ouvir esta pergunta, e
notando pelo tom da voz o interesse do meu interlocutor, comentei, tentando
criar alguma empatia: “está correto, vim falar sobre algo que os americanos
ainda não têm”. O oficial põe o convite sobre sua mesa, tira seus óculos,
respira fundo e eu me dei conta que perdera uma boa oportunidade de ficar
quieto e, mais importante, que as pessoas não mostram interesse apenas pelo que
simpatizam.
Ouvi alguns minutos de sermão (apesar da
crescente fila de passageiros atrás de mim esperando para passar pela
imigração) sobre a responsabilidade de cada indivíduo com sua saúde; a ausência
de dever da comunidade de ajudar aqueles que não se precaveram; a liberdade de
cada individuo escolher como quer viver e o que quer comprar; e Obama e o
socialismo. Ele também citou uma ação que seria impetrada na Suprema Corte para
barrar a reforma da saúde do governo Obama, alegando que o governo não pode
obrigar pessoas a adquirirem um plano de saúde. Aquela havia sido a primeira
vez em que ouvi falar sobre o caso comentado recentemente por Ronald Dworkin. O
oficial da imigração devolveu meus documentos e terminou seu discurso com um
triunfal “and welcome to the United States of America”. A prudência sugeriu que
eu agradecesse e fosse buscar a bagagem que já me esperava.
Ao ler o artigo de R. Dworkin,
imediatamente me lembrei desse ocorrido no aeroporto de Chicago. Tanto o caso
na Suprema Corte quanto o oficial com seu triunfal “and welcome to the United
States of America” chamaram minha atenção para o fato de que existe uma cultura
amplamente difundida nos Estados Unidos que se orgulha de ser hostil a
políticas redistributivas e de bem-estar baseadas no princípio da solidariedade
social, tal como a reforma de Obama para o sistema de saúde.
Mas de onde vem essa resistência à
igualdade de acesso a um bem tão fundamental como o cuidado à saúde e por que
alguns americanos acreditam que essa igualdade solaparia alguns princípios que
lhes são fundamentais?
Coincidentemente, achei uma resposta
interessante em um livro que acabei de ler: La
societé des égaux (Éditions Du Seuil, 2011), de Pierre Rosanvallon,
professor do Collège de France e do
Instituto de Altos Estudos em Ciências Sociais de Paris. Neste livro ele narra
a história da percepção social e da representação intelectual da ideia de
igualdade, e como ela impacta a formatação de políticas e instituições. P.
Rosanvallon dedica uma parte do livro para explicar o “excepcionalismo
americano”, isto é, o apego à ideia de que as privações sofridas por uma pessoa
são exclusivamente produto de suas escolhas individuais e o fato de que a
criação de políticas igualitárias e redistributivas encontra mais resistência
nos Estados Unidos do que em outros países industrializados.
P. Rosenvallon tenta explicar esse
“excepcionalismo” a partir do papel central que a questão racial teve na
história americana. O racismo fez com que a clivagem negro/branco se
sobrepusesse àquelas de caráter econômico, como pobre/rico ou
proletário/proprietário. Em reação à abolição da escravidão e à progressiva
diminuição das diferenças jurídicas entre brancos e negros, a população branca
buscou aumentar a diferença social. Diferença essa que se manifestou inclusive
fisicamente com a separação em espaços públicos, que foi referendada pela
Suprema Corte no caso Plessy v. Fergunson, em que a tese de que brancos e
negros são iguais, desde que cada um fique no seu canto (equal but separate), recebeu respaldo constitucional.
A clivagem racial fez com que o branco
operário pobre se visse e se apresentasse socialmente antes como branco do que
como operário ou pobre. Portanto, ele se sentia mais solidário ao seu patrão,
em virtude da cor da pele, do que aos negros operários e pobres. E como o
branco operário pobre sabia que sua condição econômica o aproximava dos negros,
ele precisava marcar ainda mais a diferença social ressaltando a diferença de
cor e a hostilidade contra os negros, resultando em atos extremos de racismo
simbolizados por grupos como a Ku Klux Klan.
Tal contexto tornou impossível uma
solidariedade de classe que permitiria a formação de partidos operários fortes
(como os que lideraram as reformas criadoras do welfare state na Europa). A
ausência de uma consciência de classe também dificultou a propagação da ideia
de que a pobreza não era o produto de uma escolha individual da qual o
indivíduo deveria ser responsável, mas uma condição de classe. Havia apenas
raças e, dentro de cada raça, apenas indivíduos que se distinguem pelo mérito
individual.
Rosenvallon traz um dado para corroborar
sua tese: os estados americanos com menor porcentagem de negros na sua
população são também aqueles que oferecem a proteção social mais generosa. De
acordo com o autor, é possível que muitos brancos deixem de apoiar programas
sociais dos quais poderiam se beneficiar porque não querem que os negros se
beneficiem deles também.
Importante ressaltar que em momento algum
ele afirma que aqueles que são contra políticas redistributivas ou igualitárias
atualmente são racistas. Ele tenta apenas entender o que havia de diferente na
sociedade americana que impediu o desenvolvimento de políticas sociais que
floresciam do outro lado do Atlântico.
Não tenho bagagem de conhecimento para
avaliar se a tese de P. Rosenvallon está correta, embora faça muito sentido e
esteja bem fundamentada. De qualquer forma, não se pode deixar de notar que é o
primeiro presidente negro o mais empenhado em levar adiante a universalização
do cuidado à saúde nos EUA.
* Daniel Wang, especialista em direito a saúde e políticas de saúde pública, é mestre em direito pela USP e London School of Economics e doutorando na London School of Economics.
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