Metablog Jurídico é uma reunião de posts, textos, podcasts, vídeos e outras referências tiradas de um conjunto de páginas de instituições de ensino, centros de pesquisa, blogs de acadêmicos e outros foros de apresentação e debates sobre temas jurídicos relevantes.

quarta-feira, 25 de abril de 2012

O julgamento das cotas no STF

Comecará hoje o julgamento das cotas no STF, em esquema três em um (ADPF 186; RE 597285; ADI 3330). Os outros produtos três em um que já usei na vida nunca me depecionaram, a saber, Net Combo (TV, internet e telefone) e All Clear (xampu, condicionador e anticaspa). Embora eu confie menos nos ministros Lewandowski e Ayres Britto do que na Net - e olha que confio bem pouco na Net -, estou otmista.

Os mais ferrenhos opositores públicos das cotas infelizmente não poderão acompanhar a sessão  de julgamento, por estarem muito ocupados com outras pendengas.

Demóstenes Torres, que falou, falou e falou contra as cotas, está com uma cachoeira de outros problemas na vida.

Demétrio Magnloli, que não só falou como escreveu, está explicando o que quis dizer quando, saudando a posição anticotas de Demóstenes, louvou-o em sua coluna na Revista Época como "um homem de princípios e convicções" (v. abaixo).



 Para quem acha, como Demóstenes e Magnoli, que a questão hoje em debate não têm nada a ver com a escravidão, indico a boa coluna de Élio Gáspari na Folha de S. Paulo de hoje, abaixo transcrita.

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Hoje o STF julgará as cotas

Elio Gaspari

O Supremo Tribunal Federal julgará hoje a constitucionalidade das cotas para afrodescendentes e índios nas universidades públicas brasileiras. No palpite de quem conhece a Corte, o resultado será de, pelo menos, sete votos a favor e quatro contra. Terminará assim um debate que durou mais de uma década e, como outros, do século 19, expôs a retórica de um pedaço do andar de cima que via na iniciativa o prelúdio do fim do mundo.

Em 1871, quando o Parlamento discutia a Lei do Ventre Livre, argumentou-se que libertando-se os filhos de escravos condenava-se as crianças ao desamparo e à mendicância. "Lei de Herodes", segundo o romancista José de Alencar.

Quatorze anos depois, tratava-se de libertar os sexagenários. Outro absurdo, pois significaria abandonar os idosos. Em 1888, veio a Abolição (a última de país americano independente), mas o medo a essa altura era menor, temendo-se apenas que os libertos caíssem na capoeira e na cachaça.
Como dizia o Visconde de Sinimbu: "A escravidão é conveniente, mesmo em bem ao escravo". A votação do projeto foi acelerada pelo clamor provocado pelo linchamento de um promotor que protegia negros fugidos no interior de São Paulo. Entre os assassinos, estava James Warne, vulgo "Boi", um fazendeiro americano que emigrara depois da derrota do Sul na Guerra da Secessão.
As cotas seriam coisa para inglês ver, "lumpenescas propostas de reserva de mercado". Estimulariam o ódio racial e baixariam a qualidade dos currículos da universidades. Como dissera o barão de Cotegipe, "brincam com fogo os tais negrófilos". Os cotistas seriam incapazes de acompanhar as aulas.

Passaram-se dez anos, pelo menos 40 universidades instituíram cotas para afrodescendentes e hoje há milhares de negros exercendo suas profissões graças à iniciativa.

O fim do mundo ficou para a próxima. Para quem acha que existe uma coisa como ditadura dos meios de comunicação, no século 21, como no 19, todos os grandes órgãos de imprensa posicionaram-se contra as cotas. Ressalve-se a liberdade assegurada aos articulistas que as defendiam.

Julgando a constitucionalidade das iniciativas das universidades públicas que instituíram as cotas, o Supremo tirará o último caroço da questão. No memorial que encaminharam na defesa do sistema, os advogados Márcio Thomaz Bastos, Luiz Armando Badin e Flávia Annenberg começaram pelos números:

"Em 2008, os negros e pardos correspondiam a 50,6% da população e a 73,7% daqueles que são considerados pobres. (...) Em 1997, 9,6% dos brancos e 2,2% dos pretos e pardos de 25 ou mais idade tinham nível superior".

E concluíram: "A igualdade nunca foi dada em nossa história. Sempre foi uma conquista que exigiu imaginação, risco e, sobretudo, coragem. Hoje não é diferente".

O senador Demóstenes Torres, campeão do combate às cotas, chegou a lembrar que a escravidão era uma instituição africana, o que é verdade, mas não foram os africanos que impuseram as escravatura ao Brasil.

Nas suas palavras: "Não deveriam ter chegado aqui na condição de escravos, mas chegaram...."
Hoje o Supremo virará a última página da questão. Ninguém se lembra de James Barne, mas Demóstenes será lembrado por outras coisas.


sexta-feira, 20 de abril de 2012

Pressão externa e independência do STF, de Ayres Britto a Victor Nunes Leal


Ayres Britto, poeta desde sempre e presidente do STF desde ontem, assumiu com a bandeira do julgamento do mensalão no estandarte. Jornais têm noticiado, durante toda semana, atos de pressão que partes interessadas no caso, que são muitas e com interesses diversos, têm feito sobre os ministros do Supremo para apressar o julgamento ou adiá-lo, ou ainda para interferir nos votos neste ou naquele sentido.

Pressões políticas sobre o Poder Judiciário, em geral, ou o Supremo Tribunal Federal, em particular, são antigas e fáceis de se entender. Nas democracias que depositam em órgãos de cúpula do Poder Judiciário a tarefa de guardião e uniformizador do sentido de todo o ordenamento jurídico,uma disputa por poder sempre compreenderá também uma disputa por influência sobre o tribunal e seus ministros.

Isso tudo lembra-me uma história, que serve de pretexto para compartilhar com os leitores um memorável documento, como sempre procuro fazer aqui no blog.

Em Dezembro de 1964, o veículo de informação oficial do Sistema Nacional de Informações (SNI), chamado Impressão Geral, sugeria o aumento de número de ministros no STF. Trata-se de sua edição de número 13. Era responsável pelo Impressão Geral o diretor do SNI - àquela altura, Golbery do Couto e Silva.

Boatos do desejo de interferência do governo sobre o Tribunal eram muitos e frequentes. Vinham desde que, pouco tempo após o golpe, o Tribunal - como boa parte do resto do Judiciário - passou a interferir sobre prisões políticas, mandando soltar dissidentes como Miguel Arraes. Já em outubro de 1964 o STF havia afirmado a incompetência da justiça militar para casos de crimes políticos, revoltando militares e levando a políticos como Magalhães Pinto, governador de Minas Gerais sempre muito aliado ao regime, a sugerir a criação de uma justiça de exceção apenas para o julgamento de "crimes de subversão e da guerra revolucionária".

Nesse contexto, o Supremo organizou-se para barrar o que seus ministros, com todo acerto, viam como indevida interferência política sobre o tribunal. A Corte institucionalmente manifestou-se contra a proposta de aumento, apresentando estudo que refutava o argumento, que era a "justificativa técnica" do governo, de que o aumento de juízes aliviaria a carga de trabalho dos ministros e levaria a maior agilidade nos julgamentos.

Victor Nunes Leal
Individualmente, diversos de seus membros também saíram a público para defender as prerrogativas políticas do tribunal, a maior das quais é a de não ser objeto de intervenção governamental em seus atos de julgamento. Um deles foi Victor Nunes Leal, que proferiu uma memorável palestra Faculdade de Direito da UFMG.

Intitulado "Supremo Tribunal Federal: a questão do número de juízes", o texto transcreve a fala do ministro, em agosto de 1965, rebatendo, com argumentos práticos, jurídicos e políticos, as justificativas dos militares para o aumento do número de ministros. Mais interessante de tudo é notar como ele o faz a partir de uma visão constistente, e construída a partir da história do STF no Brasil, do que deve ser o papel de uma corte suprema. Em sua opinião, um órgão como o STF não deveria sequer dividir-se em turmas. (Deve estar rolando no túmulo de saber que a vasta maioria das decisões da Corte é hoje monocrática.)

Um mês depois dessa palestra, Victor Nunes Leal participou do julgamento do líder comunista Francisco Julião, preso político, defendido pelo anti-comunista Sobral Pinto, a quem o STF mandou soltar por excesso de prazo. A revolta dos militares foi tão grande quanto por ocasião do julgamento de Arraes. Costa e Silva, àquela altura Ministro da Guerra, num churrasco de militares poucas semanas depois, instou o governo a reagir contra o Tribunal, porque o Exército não precisava levar lição de juíz nenhum.


Logo em seguida veio o AI-2, que, entre outras coisa, aumentou para 16 o número de ministros do STF. Só em Fevereiro de 1969, após o AI-5 e as aposentadorias compulsórias por ele permitidas, o Tribunal voltou a ter os mesmos 11 ministros de sempre.

Do julgamento de Francisco Julião participaram cinco ministros. O relator do caso, Luiz Galotti, votou contra a concessão do HC e sua vida seguiu como antes. Votaram pela concessão da ordem, e portanto contra os interesses do governo militar naquela situação, os ministros Gonçalves de Oliveira, Antonio Villas Boas, Evandro Lins e Silva, Hermes Lima e o mencionado Victor Nunes Leal.

Gonçalves de Oliveria aposentou-se por idade, em 1966.

Antonio Villas Boas aposentou-se no início de 1969, em protesto à interferência do governo no Tribunal.

Tal interferência consistiu justamente na aposentadoria compulsória dos outros três, imediatamente em seguida ao AI-5.

Às vezes, defender a instituição custa: quem o faz corre o risco de tornar-se impopular, de ter posta a cabeça a prêmio. Não estou certo de que Ayres Britto esteja disposto a arriscar nem a popularidade, nem a cabeça como presidente do STF. E bem neste momento em que a independência do Tribunal será fundamental. Adoro poesia e acho o novo presidente um sujeito simpático, inclusive ideologicamente, mas ficaria mais seguro com o Victor Nunes Leal lá na cadeira dele...

(Goste você do Ayres Britto ou não, não deixe de ler o texto de Victor Nunes Leal.)



quarta-feira, 18 de abril de 2012

Tortura como "causa mortis": enfim, cumpre-se um pouco da decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos

Vejam que forma interessante de começar, aos pouquinhos, a cumprir a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos que mandou ao Brasil que pare de ignorar os crimes cometidos por agentes públicos durante a ditadura (caso Gomes Lund vs. Brasil, 2010).

Trata-se de sentença do juiz Guilherme Madeira Dezem, da 2ª Vara de Registros Públicos da Capital, mandando retificar atestado de óbito de um preso político morto após sessão de tortura no DOI da Rua Tutóia. (Fonte: blog Interesse Público, de Frederico Vasconcelos)

Vistos.

Trata-se de ação promovida por MARIA ESTER CRISTELLI DRUMOND em que pretende a retificação do assento de óbito de seu falecido marido JOÃO BATISTA FRANCO DRUMOND para que conste que faleceu nas dependências do DOI/CODI II Exército, em São Paulo e para que a causa morte seja retificada para morte “decorrente de torturas físicas”. Junta documentos com a petição inicial.

Trata-se do óbito de seu falecido marido lavrado em 18 de dezembro de 1976, contante do livro 18, às fls. 138v, do Cartório do Registro Civil do 20º Subdistrito – Jardim América.
Durante a instrução foi colhida prova oral160/169.

A autora apresentou já em audiência seus memoriais finais.

O Ministério Público manifesta-se pela procedência em parte do pedido. Afirma que é possível a retificação do local do óbito, bem como afirma estar comprovado o local em que ele ocorreu. Quanto à “causa mortis” afirma não haver previsão legal para o quanto pretendido pelo autor, bem como sustenta não haver prova segura para sua pretensão (fls. 173/175).

É, em breve síntese, o que cumpria relatar. FUNDAMENTO E DECIDO.

A questão do local do óbito encontra-se amplamente comprovada nos autos. Com efeito, a prova oral é segura em demonstrar que a vítima faleceu nas dependências do DOI/CODI II Exército, em São Paulo.

Neste ponto, o depoimento de Wladimir Pomar é fundamental para que se compreenda o local da morte: afirmou a testemunha que se encontrava com a vítima em reunião do Partido Comunista, ocasião em que foram embora juntos do local.

Chamou a atenção da testemunha que a vítima possuía um saquinho de biscoito e que este saco de biscoito foi onde a vítima colocou exemplares do jornal “Classe Operária”.

Posteriormente, naquela mesma noite, foram presos (cada um em um local) e a testemunha ouviu de um carcereiro que havia sido preso alguém com um saquinho de biscoitos e dentro o jornal “Classe Operária” (fls. 161/162).

Ainda, a testemunha Haroldo disse, às fls. 163, que também se encontrava na mesma reunião e no mesmo dia em que houve a prisão. Afirma que no dia seguinte fora enviado para o Rio de Janeiro e que, no avião, identificou que se encontravam no avião Pomar, Aldo e Elza Monerrat, mas não estava a vítima Drumond.

Também a testemunha Aldo, às fls. 165, afirma que sua sessão de tortura foi subitamente interrompida e que percebeu que havia algo errado acontecendo no local. Após a tortura, foi levado para uma sala em que ficou algemado e lá pode perceber que havia uma reunião acontecendo e depois entendeu que se tratava da reunião para decidir sobre como lidar com a morte de Drumond.
Nilmário Miranda e Paulo Abrão, por sua vez, atuaram nos processos relativos à análise dos direitos dos anistiados políticos. Seus depoimentos confirmam que, na qualidade de julgadores destes processos administrativos, ficaram convencidos do falecimento de Drumond nas dependências do DOI/CODI.

A questão do local do falecimento encontra-se amplamente comprovada nos autos. Neste ponto o representante do Ministério Público, inclusive, manifesta-se favoravelmente à pretensão da autora.
Resta a questão da causa mortis.

Aqui, dois são os óbices apresentados pelo representante do Ministério Público: a) ausência de prova e b) ausência de previsão legal. Vejamos cada um dos pontos.

Quanto à ausência de prova, não me parece acertada a manifestação ministerial, com a devida vênia.

Nilmário Miranda em seu depoimento esclarece que o julgamento administrativo foi unânime no sentido da responsabilidade do estado pelo homicídio ocorrido nas dependências do DOI/CODI em decorrência da tortura.

É importante notar, inclusive, que não se trata de simples opção política pela via “a” ou “b”, mas de manifestação do direito à memória e à verdade, tanto que na comissão que julgou este caso havia membro das Forças Armadas e que votou favoravelmente à pretensão da autora.

Também, da mesma forma, é importante notar que há sentença proferida pela Justiça Federal em 1993 da lavra da Dra. Marianina Galante (fls. 37/50) que reconhece ter havido tortura no presente caso.

Então, com a devida vênia, entendo que o primeiro óbice apresentado pelo representante do Ministério Público encontra-se superado.

Quanto ao segundo ponto, entendo que se trata do principal tema a ser observado neste caso: analisar o que efetivamente pode integrar a certidão de óbito como causa mortis.

Aqui, a posição do representante do Ministério Público mostra-se dotada de estrita técnica e para a maioria dos casos envolvendo esta questão, não tenho dúvidas que a solução seja de improcedência.
Vale dizer: certidão de óbito não é local para discussão atinente a crime ou qualquer outro elemento passível de questionamento ou interpretação jurídica. É dizer: no atual sistema jurídico, não podem as partes pretender a retificação de certidão de óbito para que se conste que a pessoa morreu em decorrência de latrocínio, ou homicídio, ou qualquer outro elemento.

No entanto, há detalhe neste caso que o torna diferente de todos os outros existentes no país. Este caso liga-se ao chamado Direito à Memória e à Verdade e, acima de tudo, liga-se à relação do sistema jurídico interno com a Proteção Internacional dos Direitos Humanos.

No Caso Gomes Lund e outros (Guerrilha do Araguaia) vs. Brasil, houve a condenação do Estado brasileiro em 24.11.2010. Nesta sentença ficou reconhecido que:

“El Estado ha incumplido la obligación de adecuar su derecho interno a la Convención Americana sobre Derechos Humanos, contenida en su artículo 2, en relación con los artículos 8.1, 25 y 1.1 de la misma, como consecuencia de la interpretación y aplicación que le ha dado a la Ley de Amnistía respecto de graves violaciones de derechos humanos. Asimismo, el Estado es responsable por la violación de los derechos a las garantías judiciales y a la protección judicial previstos en los artículos 8.1 y 25.1 de la Convención Americana sobre Derechos Humanos, en relación con los artículos 1.1 y 2 de dicho instrumento, por la falta de investigación de los hechos del presente caso, así como del juzgamiento y sanción de los responsables, en perjuicio de los familiares de los desaparecidos y de la persona ejecutada indicados en los párrafos 180 y 181 de la presente Sentencia, en los términos de los párrafos 137 a 182 de la misma.” (p. 116).

Vale dizer, há sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos que determina que o Brasil efetive medidas para o reconhecimento do Direito à Memória e à Verdade.

Daí a particularidade deste caso que o afasta de todos os demais com pretensões similares. Não se trata de discutir se tortura pode ser incluída como “causa mortis” ou não. Trata-se de reconhecer que, na nova ordem jurídica, há tribunal cujas decisões o Brasil se obrigou a cumprir e esta é mais uma destas decisões.

Assim é a lição de André de Carvalho Ramos que ensina que “Já no sistema judicial interamericano há o dever do Estado de cumprir integralmente a sentença da Corte, conforme dispõe expressamente o artigo 68.1 da seguinte maneira: ‘Os Estados-partes na Convenção comprometem-se a cumprir a decisão da Corte em todo caso em que forem partes’” (RAMOS, André de Carvalho. Processo Internacional de Direitos Humanos, 2ª edição, São Paulo, Editora Saraviva, p. 235).

Também é importante notar que neste mesmo julgado da Corte, o juiz Roberto de Figueiredo Caldas em seu voto faz importante advertência: “31.É preciso ultrapassar o positivismo exacerbado, pois só assim se entrará em um novo período de respeito aos direitos da pessoa, contribuindo para acabar com o círculo de impunidade no Brasil. É preciso mostrar que a Justiça age de forma igualitária na punição de quem quer que pratique graves crimes contra a humanidade, de modo que a imperatividade do Direito e da Justiça sirvam sempre para mostrar que práticas tão cruéis e desumanas jamais podem se repetir, jamais serão esquecidas e a qualquer tempo serão punidas.”

Ante o exposto, julgo PROCEDENTE o pedido para determinar a retificação da certidão de óbito de fls. 21 para que onde se lê “falecido no dia 16 de dezembro de 1976 na Av. 9 de Julho c/R;Paim” conste “falecido no dia 16 de dezembro de 1976 nas dependências do DOI/CODI II Exército, em São Paulo” e onde se lê causa da morte “Traumatismo craniano encefálico” leia-se “decorrente de torturas físicas”.

Após certificado o trânsito em julgado, concedo o prazo de até 30 (trinta) dias para a extração de cópias necessárias. Custas à parte autora.

ESTA SENTENÇA SERVIRÁ COMO MANDADO, desde que por cópia extraída pelo setor de reprografia do Tribunal de Justiça, assinada digitalmente por este(a) Magistrado(a) e acompanhada das cópias necessárias ao seu cumprimento, inclusive da certidão de trânsito em julgado, todas numeradas e rubricadas, com certidão abaixo preenchida pela Sra. Coordenadora ao Sr. Oficial da Unidade do Serviço de Registro Civil das Pessoas Naturais competente para que proceda às retificações deferidas. Outrossim, se aplicável, poderá nesta ser exarado o respeitável “CUMPRA-SE” do Excelentíssimo Senhor Doutor Juiz Corregedor Permanente competente, ordenando seu cumprimento pelo Senhor Oficial da respectiva Unidade do Serviço de Registro Civil das Pessoas Naturais.

Ciência ao Ministério Público.

Oportunamente, arquivem-se os autos.

P.R.I.


Direito à saúde e Suprema Corte dos EUA: comentário de Daniel Wang ao texto de Dworkin

Aproveitando o embalo do texto de Dworkin postado no início desta semana, convidei Daniel Wang, especialista no tema do acesso à saúde, para comentá-lo. Muito gentilmente, ele aceitou e enviou o ótimo texto abaixo, que compartilho com os leitores.
 

A universalização do cuidado à saúde e o excepcionalismo americano

Daniel Wang*

Aeroporto de Chicago, junho de 2010. O oficial da imigração olha para minha cara, confere o passaporte, e começa a bateria de perguntas. Quanto tempo vai ficar em solo americano? Duas semanas. Parentes? Apenas um tio do meu pai, que pretendo visitar. Qual o propósito de sua viagem? Vim para a conferência da American Law and Society Association, inclusive tenho um convite da organização, caso o senhor queira ver. (pausa para leitura) Então você vem falar sobre direito à saúde?
Ao ouvir esta pergunta, e notando pelo tom da voz o interesse do meu interlocutor, comentei, tentando criar alguma empatia: “está correto, vim falar sobre algo que os americanos ainda não têm”. O oficial põe o convite sobre sua mesa, tira seus óculos, respira fundo e eu me dei conta que perdera uma boa oportunidade de ficar quieto e, mais importante, que as pessoas não mostram interesse apenas pelo que simpatizam.
Ouvi alguns minutos de sermão (apesar da crescente fila de passageiros atrás de mim esperando para passar pela imigração) sobre a responsabilidade de cada indivíduo com sua saúde; a ausência de dever da comunidade de ajudar aqueles que não se precaveram; a liberdade de cada individuo escolher como quer viver e o que quer comprar; e Obama e o socialismo. Ele também citou uma ação que seria impetrada na Suprema Corte para barrar a reforma da saúde do governo Obama, alegando que o governo não pode obrigar pessoas a adquirirem um plano de saúde. Aquela havia sido a primeira vez em que ouvi falar sobre o caso comentado recentemente por Ronald Dworkin. O oficial da imigração devolveu meus documentos e terminou seu discurso com um triunfal “and welcome to the United States of America”. A prudência sugeriu que eu agradecesse e fosse buscar a bagagem que já me esperava.
Ao ler o artigo de R. Dworkin, imediatamente me lembrei desse ocorrido no aeroporto de Chicago. Tanto o caso na Suprema Corte quanto o oficial com seu triunfal “and welcome to the United States of America” chamaram minha atenção para o fato de que existe uma cultura amplamente difundida nos Estados Unidos que se orgulha de ser hostil a políticas redistributivas e de bem-estar baseadas no princípio da solidariedade social, tal como a reforma de Obama para o sistema de saúde.
Mas de onde vem essa resistência à igualdade de acesso a um bem tão fundamental como o cuidado à saúde e por que alguns americanos acreditam que essa igualdade solaparia alguns princípios que lhes são fundamentais?
Coincidentemente, achei uma resposta interessante em um livro que acabei de ler: La societé des égaux (Éditions Du Seuil, 2011), de Pierre Rosanvallon, professor do Collège de France e do Instituto de Altos Estudos em Ciências Sociais de Paris. Neste livro ele narra a história da percepção social e da representação intelectual da ideia de igualdade, e como ela impacta a formatação de políticas e instituições. P. Rosanvallon dedica uma parte do livro para explicar o “excepcionalismo americano”, isto é, o apego à ideia de que as privações sofridas por uma pessoa são exclusivamente produto de suas escolhas individuais e o fato de que a criação de políticas igualitárias e redistributivas encontra mais resistência nos Estados Unidos do que em outros países industrializados.
P. Rosenvallon tenta explicar esse “excepcionalismo” a partir do papel central que a questão racial teve na história americana. O racismo fez com que a clivagem negro/branco se sobrepusesse àquelas de caráter econômico, como pobre/rico ou proletário/proprietário. Em reação à abolição da escravidão e à progressiva diminuição das diferenças jurídicas entre brancos e negros, a população branca buscou aumentar a diferença social. Diferença essa que se manifestou inclusive fisicamente com a separação em espaços públicos, que foi referendada pela Suprema Corte no caso Plessy v. Fergunson, em que a tese de que brancos e negros são iguais, desde que cada um fique no seu canto (equal but separate), recebeu respaldo constitucional.
A clivagem racial fez com que o branco operário pobre se visse e se apresentasse socialmente antes como branco do que como operário ou pobre. Portanto, ele se sentia mais solidário ao seu patrão, em virtude da cor da pele, do que aos negros operários e pobres. E como o branco operário pobre sabia que sua condição econômica o aproximava dos negros, ele precisava marcar ainda mais a diferença social ressaltando a diferença de cor e a hostilidade contra os negros, resultando em atos extremos de racismo simbolizados por grupos como a Ku Klux Klan.
Tal contexto tornou impossível uma solidariedade de classe que permitiria a formação de partidos operários fortes (como os que lideraram as reformas criadoras do welfare state na Europa). A ausência de uma consciência de classe também dificultou a propagação da ideia de que a pobreza não era o produto de uma escolha individual da qual o indivíduo deveria ser responsável, mas uma condição de classe. Havia apenas raças e, dentro de cada raça, apenas indivíduos que se distinguem pelo mérito individual.
Rosenvallon traz um dado para corroborar sua tese: os estados americanos com menor porcentagem de negros na sua população são também aqueles que oferecem a proteção social mais generosa. De acordo com o autor, é possível que muitos brancos deixem de apoiar programas sociais dos quais poderiam se beneficiar porque não querem que os negros se beneficiem deles também.
Importante ressaltar que em momento algum ele afirma que aqueles que são contra políticas redistributivas ou igualitárias atualmente são racistas. Ele tenta apenas entender o que havia de diferente na sociedade americana que impediu o desenvolvimento de políticas sociais que floresciam do outro lado do Atlântico.
Não tenho bagagem de conhecimento para avaliar se a tese de P. Rosenvallon está correta, embora faça muito sentido e esteja bem fundamentada. De qualquer forma, não se pode deixar de notar que é o primeiro presidente negro o mais empenhado em levar adiante a universalização do cuidado à saúde nos EUA.
 * Daniel Wang, especialista em direito a saúde e políticas de saúde pública, é mestre em direito pela USP e London School of Economics e doutorando na London School of Economics.

terça-feira, 17 de abril de 2012

Qual a diferença entre brócolis e sistemas de saúde?

O blog Supremo em Debate indicou recentemente um texto de Ronald Dworkin que trata do mais polêmico julgamento que a Suprema Corte dos EUA enfrentará neste ano: Department of Health and Human Services v. Florida, que analisará a constitucionalidade da reforma do sistema de saúde realizada pelo governo Obama. A Corte analisará a parte da reforma que manda àqueles que não tenham plano de saúde privado ou empresarial pagar uma sobretaxa em seu imposto de renda ou aderir a um plano de cobertura mínima.

O Estado da Flórida tenta, através da ação, anular a obrigatoriedade de contratação de plano de saúde. "Republicano barbaridade", como diria o Analista de Bagé, a Flórida está há 12 anos sem ver democratas em seu comando, tendo inclusive passado pelas mãos de Jeb Bush, filho do dito cujo e irmão do dito W. cujo (só pronuncio os nomes em caso de estrita necessidade). O estado argumenta que ninguém pode ser obrigado a contratar um plano de saúde. 

A discussão do caso envolve, entre outros temas relevantes (como o desenho federativo do sistema de saúde), uma interessante questão de intersecção entre o Direito e a filosofia política: é conforme à constituição de uma democracia liberal que o governo ordene a alguém que compre alguma coisa - neste caso, uma cobertura mínima de plano de saúde?

Não há precedentes judiciais a respeito, até onde sei. Desde 1792, quando foi passado um conjunto de estatutos apelidado de Militia Acts, mandando a todos os homens (brancos, claro) que comprassem armas para poder formar exércitos de defesa do país, não se aprovava uma lei que tentasse obrigar "they the people" a comprar alguma coisa. Os Militia Acts nunca foram implementados. Mais de duzentos anos depois, a Suprema Corte finalmente poderá dizer se essa ordem para que se compre algo, chamada "individual mandate", é ou não constitucional. Já houve os debates orais do caso e o veredito deve sair na primeira semana de junho.

Em seu texto, ao comentar os debates orais entre ministros e advogados do caso, Dworkin mencionou um argumento de um ministro conservador (Antonin Scalia) que me chamou muito a atenção: se todos podem ser obrigados a comprar cobertura de saúde, por que não poderíamos obrigá-los a comprar brócoli? 

Só acompanho o debate da reforma do "Obamacare" pelo jornal, mas vou arriscar um pitaco na questão. Se os amigos leitores que estão nos EUA ou são mais familiarizados com o tema quiserem esclarecer algo ou apontar meus erros, fiquem à vontade, embora meu ponto aqui seja mais filosófico do que fático.

Parece-me que Scalia parte de uma confusão conceitual em seu raciocínio, que o leva a conclusões impróprias. A idéia de saúde, ou de um direito à saúde, não deve tomar a "saúde" como um bem individual, como brócolis, carros, gravatas etc. A saúde pode, claro, ser vista como qualidade ou propriedade de alguém ("Fulano tem saúde, ao contrário de Sicrano, que está doente"). Mas pode também ser pensada como um bem comunitário, a ser prestado segundo uma lógica de interesse público e mantido por uma rede ampla de cooperação, que só pode existir coletivamente.

No segundo caso, ter direito à saúde não é a mesma coisa que ter direito a ser ou ficar saudável. Se eu tiver diagnosticado um grave câncer, para o qual só haja chances de cura por meio de um tratameno experimental oferecido no Japão, ter direito a saúde no primeiro caso (ter direito a ficar saudável) obrigaria o Estado a me mandar ao Japão. No segundo caso, o Estado não tem obrigação de me mandar ao Japão a não ser que isso faça parte dos mesmos direitos garantidos a todas as outras pessoas em condições iguais às minhas, dentro de um esquema de cooperação que visa a garantir padrões mínimos de tratamento a todos.

No primeiro caso, pensa-se o indivíduo e sua saúde individual fora do esquema de distribuição de ônus (quem paga a conta?) e direitos (quem tem acesso a quais tratamentos?) que necessariamente compõem a saúde, como bem coletivo, no segundo.

Pois bem, quando pensamos em um direito à saúde, como direito a ser garantido à universalidade das pessoas, só podemos pensá-lo como um bem coletivo. A analogia adequada, nestas situações, não é com brócolis, um bem individual, mas com outros bens coletivos, como o saneamento básico. Um esquema de garantia universal de água potável e tratamento de esgoto só consegue existir se pensado comunitariamente. Já pensaram se tivéssemos de comprar nosso saneamento como compramos brócolis? Contrataríamos uma empreiteira para fazer a tubulação de um rio distante até a nossa casa, para termos água; contrataríamos um químico para fazer o tratamento da água e deixá-la potável; a mesma empreiteira faria a tubulação para levar o esgoto de volta para um rio qualquer, e o químico faria o tratamento dos dejetos que iriam embora pelo esgoto. Resultados: (i) isso seria inviavelmente caro; (ii) a maioria das pessoas não poderia pagar, o que provavelmente significa que o primeiro rio secaria e o segundo acabaria desgraçadamente poluído; e (iii) as redes de água e esgoto individuais brigariam entre si. Em suma: não funcionaria.

Por isso o governo cria empresas públicas que têm o monopólio do tratamento de água e esgoto (Sabesp, Sanasa etc.) e nos cobram tarifas compulsórias pelos seus serviços. Elas são compulsórias porque, em primeiro lugar, o custo de as pessoas ficarem de fora delas inviabilizaria o acesso ao saneamento quando elas finalmente decidissem contratá-lo, porque seria caríssimo. E também porque essa não participação afetaria a todos demais membros da comunidade, pois de nada adianta eu ter ótimo acesso a esgoto se o meu vizinho não o tiver e sua casa se tornar um foco de febre tifóide, que poderá contaminar tanto a ele quanto a mim.

Há coisas que só funcionam se forem realizadas comunitariamente. A elas chamamos "bens coletivos" ou "bens comunitários". Brócolis não é uma delas. Um sistema de saúde público acessível e de mínima qualidade, sim.












segunda-feira, 16 de abril de 2012

Direito Econômico e Política Industrial

Mário Gomes Schapiro

Mario Schapiro, professor da DIREITO GV, pulbicará no próximo número da revista Novos Estudos, do Cebrap, um interessante artigo sobre mecanismos de accountability para a política industrial Brasileira.

Com autorização dele, desponibilizo a íntegra do artigo aos leitores do Metablog. Basta clicar aqui. O argumento interessante do artigo é que, além de desejável, é possível estabelecer mecanismos que melhorem a transparência e confiabilidade das decisões de política industrial do governo, especialmente pelo seu braço de financiamentos. O texto oferece o exemplo do marco regulatório da política monetária brasileira e sustenta que parâmetros semelhantes seriam bem-vindos no BNDES.

Para quem não conhece, Schapiro é um dos principais autores do Direito Econômico hoje no Brasil. Estou longe de ser especialista no assunto, mas já tive de ler uma outra coisa a respeito, em razão do ofício. Sua tese de doutorado Novos Parâmetros para a Intervenção do Estado na Economia, integralmente disponível na biblioteca digital da USP, é das melhores coisas publicadas ultimamente na área. Para quem prefere a versão de papel à digital, o livro respectivo foi publicado pela Saraiva em 2010. Acha-se facilmente via Google.

Em tempo, porque accountability é bom lá e cá, devo informar também que Schapiro é um bom amigo do editor deste blog. O que desmerece a ele, por andar em má companhia, mas não afeta o artigo, que é ótimo e caminha com pernas próprias - tanto assim que sairá na Novos Estudos.

sexta-feira, 13 de abril de 2012

Quando ser "pela vida" fez diferença: Cezar Peluso e Nelson Fonseca

Vi há pouco os "melhores momentos" do voto do Min. Cezar Peluso no julgamento do aborto de fetos anencefálicos. Achei muito ruim. Não concordo com as conclusões, mas não é por isso que não gostei. É que os argumentos dele foram ruins. Como também foram os do Min. Ricardo Lewandowski. (E os do Min. Ayres Britto e de alguns outros que votaram a favor do meu ponto de vista, diga-se de passagem.) Em breve postarei aqui alguns bons argumentos anti-aborto, pelo amor ao debate.

Passado o calor do caso, acho importante pontuar certos fatos e conter alguns excessos. Quem se julga progressita amanheceu com a felicidade dos vencedores, que não raras vezes é acompanhada de soberba em relação aos vencidos. O Min. Cezar Peluso, sabidamente católico fervoroso, personifica o objeto desse desdém, como se tudo o que ele representasse fosse conservador e atrasado.

Isso pode ser verdade em diversas coisas. Mas é muito importante lembrar que esses seus mesmos princípios, que nos parecem agora anacrônicos e aos quais ele se manteve fiel em seu voto, motivaram-no, em outras épocas, a atitudes de muita coragem.

Peluso fez parte do grupo católico-progressista da magistratura paulista. Seus membros estiveram entre os que mais incomodaram a banda podre e assassina da repressão política durante o regime militar, especialmente em seus anos mais duros. Ao seu lado, gente como Adauto Suannes e Nelson Fonseca, todos juízes em começo ou meio de carreira na década de 1970, nunca aceitaram os desaparecimentos,os assassinatos e as torturas, ainda que reprovassem (como é esperado de juízes) a luta da esquerda armada.

Essas pessoas, em "militância" silenciosa que consistia em nada mais do que exercer suas funções públicas segundo a letra da lei e os mandamentos de sua razão, causaram muito embaraço e constrangimento às autoridades que fingiam não saber o que acontecia nas carceragens e rondas, especialmente da polícia civil. Não eram pessoas de esquerda (ao contrário), não eram revolucionários, nem tinham atividade política. Só achavam ilegais e desumanas as torturas e assassinatos praticadas por autoridades e não se furtavam a denunciá-las quando sua função pública assim exigisse.

Nesses casos, ser "pela vida" foi muito importante na afirmação dos Direitos Humanos no Brasil. Como hoje vêm da Igreja muitos dos mais combativos militantes pelos direitos dos presos, a exemplo do lendário Padre Agostinho.

Essa mistura de conservadorismo moral e cumprimento estrito do dever público, resultante numa curiosa proteção convservadora dos direitos humanos, é muito bem ilustrada na representação feita por Nelson Fonseca à Presidência do Tribunal de Justiça de São Paulo em relação aos crimes do Esquadrão da Morte.

Fonseca, homem também muito católico, começou a carreira como policial e passou no concurso para a Magistratura Paulista. Sua ocupação anterior o tornava candidato natural ao posto de Juiz Corregedor dos Presídios e da Polícia Judiciária. Para lá foi mandado em julho de 1970. A representação disponibilizada no link acima, feita no primeiro mês de Fonseca como juiz corregedor, servia para deixar formalmente ciente a cúpula do judiciário paulista sobre aquilo que todo mundo sabia mas fingia não saber: que a Polícia Civil de São Paulo matava à vontade, sem medo de ser perturbada pelas autoridades.

Na época, o Esquadrão da Morte colocava as duas asas de fora sem ser minimamente incomodado pelo então secretário de justiça de São Paulo, Hely Lopes Meireles, que desde 1968 comandava a segurança pública do Estado, aproximou a polícia civil paulista ao Exército por ocasião da criação da Oban, levou Sérgio Paranhos Fleury ao comando do DOPS e e publicava textos de legitimação do AI-5 nas melhores revistas jurídicas do país (v. "Natureza, conteúdo e implicações do Ato Institucional n. 5", RT 398/419, dez. 1968). Depois da Constituição de 1988, publicou um livro sobre as ações constitucionais, com direito a atualização do Gilmar Mendes e tudo mais, e de repente virou democrata. Cai em concurso público até hoje...

Com todas as minhas divergências de princípios morais em relação ao Peluso no caso dos anencéfalos, mil vezes gente como ele e Nelson Fonseca aos democratas convertidos aos 45 do segundo tempo.

quinta-feira, 12 de abril de 2012

O aborto, entre o Congresso e o STF


Publiquei hoje no jornal O Estado de S. Paulo um artigo sobre a legitimidade do STF para afastar a incidência do Código Penal no caso de abortos anencefálicos. A matéria está na versão impressa e na on-line, e pode ser lida aqui.

O artigo é breve, porque assim exige o jornal. Sua versão original era bem maior e mais detalhada na argumentação e está disponível aqui, como também na minha página do Bepress.

quarta-feira, 11 de abril de 2012

Hoje é dia de Estado laico no STF: Dworkin sobre Estado e religião

Na tarde de hoje, o STF provavelmente julgará inconstitucional a criminalização do abortamento ("antecipação terapêutica do parto") em casos de anencefalia. Os ministros já estão dando pistas de que votarão assim faz tempo, ainda bem. Quem já acompanhou uma gestação é capaz de imaginar o tamanho da crueldade de se obrigar a gestante a conduzir a termo uma gravidez nessas condições.

A dificuldade do debate público a esse respeito envolve divergências, que raramente vêm à tona (acho que porque muitos não conseguem identificar que divergem sobre isto), sobre o significado jurídico e moral da "vida", para fins de sua proteção. Em que circunstâncias uma vida biológica, inegavelmente existente, é também uma vida no sentido jurídico e moral do termo (um bem a ser protegido)? E, tão importante quanto, em que medida pode um Estado laico, em um terreno tão pantanoso e dividido, incorporar uma particular concepção de valor moral da vida e impô-la, sob ameaça de uma pena criminal, a pessoas que, por razões de foro íntimo (morais, religiosas, políticas) não compartilhem dessa concepção, embora sejam tão cidadãs quanto outras que dela compartilham?

Pensar essa questão envolve uma grande clareza de princípios, no sentido mais próprio do termo, isto é, de pontos de partida a partir dos quais desdobramos nosso raciocínio até chegarmos a um juízo final (trocadilho irônico, notem) sobre a polêmica. Nesses termos de clareza de princípios, não conheço ninguém mais ilustrativo do que o Ronald Dworkin, de quem os leitores mais frequentes do blog já me ouviram falar outras vezes.

Há uma palestra proferida por ele, às vésperas da eleição do Obama, na Universidade de Nebraska, sobre o papel da religião no debate público de uma democracia. Como o STF provavelmente decidirá a questão dos anecéfalos de maneira correta, mas (muito) proavalmente não indicará as melhores e mais firmes razões para tanto, porque nos casos em que jogam para a platéia dificilmente o fazem - vejam o caso da ADI 3510, em que as autoridades mais frequentemente invocadas pelo relator foram Tom Zé e Revista Época -, serve a palestra de Dworkin (sem legenda, infelizmente) como um remédio preventivo para a manqueira argumentativa do Excelso Pretório.