A Comissão Nacional da Verdade, tão logo
constituída, iniciou suas atividades com objetivo de cumprir sua missão:
efetivar o direito à memória e à verdade histórica relativo a períodos
importantes da história do Brasil.
Reviravoltas
da história à parte, a correta leitura técnica da situação é
inequívoca:
Carlos Alberto Brilhante Ustra não tem direito jurídico ao silêncio em
depoimento colhido sob autoridade da Comissão Nacional da Verdade.
A lei que criou a Comissão deu-lhe instrumentos
necessários para atingir seus objetivos. Um deles é o poder de convocar, “para entrevistas ou testemunho, pessoas que possam
guardar qualquer relação com os fatos e circunstâncias” por ela examinados.
Ao mesmo tempo, a mesma lei cuidou de esclarecer que,
em respeito ao entendimento prevalecente de que é vigente a Lei de Anistia de
1979, inclusive com manifestação expressa recente do STF nesse sentido, a
Comissão da Verdade não tem “caráter jurisdicional ou persecutório”.
O
coronel da reserva Carlos Alberto Brilhante
Ustra foi convocado pela Comissão Municipal da Verdade de São Paulo, em
convênio com a Comissão Nacional da Verdade, para prestar depoimento
sobre fatos que pertencem ao escopo de apuração dessas entidades, sobre
os quais ele muito terá a revelar. Entre 1970 e 1974, Ustra comandou o
DOI-Codi em São Paulo.
Alguns
jornais têm dito que, comparecendo, Ustra poderia
fazer uso do direito ao silêncio, assegurado pela Constituição a
investigados e
acusados. Não sei de onde vem essa opinião (nenhuma notícia onde li essa
informação referencia qualquer especialista como fonte), mas ela me
parece errada.
A figura jurídica da convocação tem natureza compulsória: o convocado tem dever de comparecer, sob pena de responder criminalmente, em geral por desobediência (Código Penal, art. 330).
A figura jurídica da convocação tem natureza compulsória: o convocado tem dever de comparecer, sob pena de responder criminalmente, em geral por desobediência (Código Penal, art. 330).
A testemunha não tem direito ao
silêncio, só acusados e investigados o tem. O Direito assume que, à vista do
que está em jogo para esses últimos – uma condenação criminal, coisa gravíssima – não lhes é exigível
qualquer colaboração participativa com suas próprias acusações.
Juridicamente, a manifestação pessoal do acusado é um
ato de defesa, não de informação. Daí o porquê de o acusado não ser punido, no
direito brasileiro, por mentir em juízo, ao contrário da testemunha ou do
perito, cuja função precípua é informar. A testemunha que minta ou cale a verdade será punida por falso
testemunho (Código Penal, art. 342). A liberdade de permanecer em silêncio não aproveita a testemunha porque a
ameaça que pende sobre o acusado ou investigado – a iminência de condenação penal – não
paira sobre ela.
Se alguém é convocado como pretensa testemunha, mas é
um potencial investigado, essa burla investigativa deve ser corrigida para que
seu direito ao silêncio seja garantido, como já fez diversas vezes o STF ao
assegurar direito ao silêncio a convocados por CPIs. Mas, no caso de Ustra, essa
possibilidade jurídica sequer existe: a Lei de Anistia impede sua punição e a
lei de criação da Comissão Nacional da Verdade afirma expressamente não ter ela
poder persecutório ou jurisdicional. Se há acusação contra Ustra, não se trata de uma
acusação jurídica, mas sim histórica e moral.
A civilidade institucional em que
hoje vivemos permite a Ustra, claro, clamar por esse direito perante o
Judiciário. Contemplaremos então a ironia de assistir ao
julgamento de uma ação que era inacessível aos investigados do DOI-Codi – um habeas corpus, vedado pelo AI-5 – para a
proteção do mesmo direito ao silêncio que, à força, foi igualmente negado a
muitos que passaram por seus porões.